Pequena Nota sobre a Relação Causal entre as Duas Potestades (e apêndice sobre Cardeal Caetano).

André Theophorus
7 min readMar 31, 2021

Com efeito, os domínios da Terra e do Céu são distintos -"o homem é um cidadão de dois mundos"-, na medida em que a causa de ambos os efeitos os constituiu de forma que ela mesma é princípio de ambos, e nenhum assim tem poder geracional um sobre outro. Isso não implica, todavia, como não é o caso aqui, que ambos estejam completamente separados enquanto efeito.

No caso das potestades, Deus as fez de tal forma que nem a potestade espiritual é causa da temporal, nem a temporal é causa da espiritual. Ambas participam e dependem de uma Única causa, Deus.

Explica Escoto em seu Tratado do Primeiro Princípio:

“Se a causa tem dois efeitos, sendo um imediato e causado natural e o outro somente [existente] depois do efeito mais imediato ser causado, este segundo efeito é posterior, e o efeito mais próximo é anterior com respeito a mesma causa. […] Que este… efeito mais remoto dependa essencialmente do efeito mais próximo prova-se tanto porque ele não pode existir sem o efeito mais próximo como porque a causalidade da causa se relaciona ordenadamente por esses dois efeitos”

Derivando sua legitimidade da Lei Natural, o poder temporal é dado diretamente por Deus. Não se trata, portanto, do mesmo caso que Escoto explicita, onde o efeito remoto é causado pelo efeito próximo. Mesmo assim, esse excerto traz a noção necessária de uma ordenação entre efeitos de uma única causa. Como o Doutor Sutil destaca, “a causalidade da causa se relaciona ordenadamente…”.

Qual é a ordem, portanto, imbricada na relação entre ambas potestades? Responde, acreditamos que corretamente, Santo Tomás em seu comentário às Sentenças:

“Existem duas maneiras em que um poder superior e um inferior podem se associar. Por um lado, o poder inferior pode ser completamente derivado do superior, e todo o poder do inferior será então fundado no superior; nesse caso, devemos obedecer ao poder superior antes do inferior simplesmente em todas as coisas […]. Desta forma […] é o poder do imperador relacionado ao do cônsul. […]. De maneira distinta, um poder superior e um poder inferior podem ser tais que cada um surge de um poder supremo que os dispõe em relação uns aos outros como deseja. Nesse caso, um não estará sujeito ao outro, exceto com respeito às coisas em que foi submetido ao outro pelo poder supremo; e somente nessas coisas devemos obedecer ao poder superior antes do inferior. […] O poder espiritual e o secular derivam do poder divino e, portanto, o poder secular está sujeito ao poder espiritual na medida em que é ordenado por Deus: isto é, nas coisas que pertencem à salvação da alma. Em tais assuntos, então, o poder espiritual deve ser obedecido antes do secular. Mas nas coisas que pertencem ao bem civil, o poder secular deve ser obedecido antes do espiritual, de acordo com Mateus 22:21: ‘Renda a César o que é de César’”.

“O poder secular está sujeito ao espiritual na medida em que é ordenado a Deus”. Mesmo sendo de uma mesma fonte, uma mesma causa, a causalidade aqui tenciona uma hierarquia entre os efeitos, de forma que o “efeito” temporal apenas cumpre com sua dignidade na medida em que submete seu juízo sobre coisas espirituais e mais elevadas ao poder espiritual. Sendo a Igreja mais próxima e cumprindo o papel central, da Graça, na economia da Salvação, a tese da diarquia gelasiana não é senão um estabelecer rígido de duas potestades, onde uma se subordina à outra nas coisas do espírito.

A exigência “ratione peccati”, agora talvez se torne mais clara: quando o poder temporal (Estado) interfere ativamente contra a salvação das almas, tal poder incorre em desordem, transgredindo suas funções e assim, também decaindo em dignidade, enquanto não cumpre com a ordem que sua causa (Deus) estabeleceu para com o outro efeito (Igreja).

Por fim, talvez seja proveitoso notar a questão do bem, ou fim, de cada potestade. Falar de Ordem na filosofia Tomista é falar de finalidade, parafraseando Carlos Sacheri. Diz Tomás na ScG (111–71) que “a ordem é a unidade resultante da disposição conveniente de muitas coisas”, tal conveniência não é, senão, uma ordenação a um fim, que dá ao diverso uma unidade. Como o fim da potestade espiritual é sobrenatural e, por essência, mais digno, o fim natural (as duas beatitudes) da vida virtuosa se ordena para a vida da Graça. Tal raciocínio também é exposto em “De Regimine Principium”:

“O fim dos indivíduos associados é viver virtuosamente, pois os homens se unem em sociedade a fim de obter dela a proteção para viver bem, e viver bem ao homem não é senão viver segundo a virtude. Mas este fim não pode ser o último em absoluto. Posto que o homem, atento à sua alma imortal, está destinado à bem aventurança eterna, e a sociedade instituída ao homem não pode prescindir daquilo que é seu Bem Supremo. A vida virtuosa, então, não é o fim último da associação humana, mas é através de uma vida de virtudes que se chega a felicidade eterna.

Agora, aquele que guia e conduz à obtenção da bem-aventurança eterna não é outro senão Jesus Cristo, que concedeu este cuidado aqui na terra, não aos príncipes seculares, mas ao sacerdócio instituído por Ele e principalmente ao Sumo Sacerdote, ao seu Vigário, o Romano Pontífice. Então, ao sacerdócio cristão, e principalmente ao Romano Pontífice, todos os governantes civis do povo cristão devem estar subordinados. Pois aqueles a quem pertence o cuidado dos fins próximos ou intermediários devem ser subordinados aquele a quem pertence o cuidado do fim último” .

A concepção católica da relação entre ambos os poderes, portanto, é delicada e consistente, se afastando tanto de um suposto governo teocrático quanto de uma posição secular, explícita ou implícita.

[APÊNDICE]- Caetano e a relação Estado-Igreja na Suma Teológica.

Em seus portentosos comentários à Suma do Doutor Comum, o cardeal Tomás de Vio Caetano, ao ler a q.60, a.6 ad.3. da IIa IIae, tece importantes apontamentos usando da própria obra do Santo. Antes de analisarmos estes comentários, segue o texto de Santo Tomás que será aqui perscrutado:

"Quanto ao terceiro, deve-se dizer que o poder secular está sujeito ao espiritual como o corpo à alma. Por isso, não é usurpado o julgamento, quando o prelado espiritual se intromete nas coisas temporais, naquilo que o poder secular lhe está submetido, ou que o poder secular lhe relega".

O cardeal, ao contrário do caminho aqui tomado -o de explicar como se dá essa subordinação em termos de causa-, explana o princípio de proporção que Tomás denota: o de corpo e alma. Isto é, Caetano elucubra sobre a relação do composto binomial do homem, para aprofundar a compreensão dessa analogia.

Segundo Caetano, a alma age sobre o corpo de três formas: eficiente, formal e finalmente.

Eficientemente, porque é causa dos movimentos dos animais (alma como princípio de movimento. Formalmente, porque a alma é a forma do corpo (matéria). Finalmente, porque o corpo é para o bem da alma. (415b8–12; St. Th., In libros de anima).

O comentador argumenta que, assim como a alma, é para o poder espiritual que o poder temporal existe, "como forma, motor, e fim". As coisas espirituais, comandadas pela Igreja, regem como proporção intrínseca das coisas temporais, e por regerem (causa formal), comandam essas coisas corpóreas para o fim que lhes é devida -já que as coisas corpóreas são para o bem das coisas espirituais, assim como a Natureza é para o bem da Graça (causa final)-, agindo ativamente para tal fim (causa eficiente).

Além dessa detalhada explanação da analogia, esse grande mestre proporciona mais uma bela distinção: até e em que medida as coisas do poder temporal estão subordinadas ao poder espiritual. E sua opinião conflui com a já aqui externada; até a medida "ratione peccati". Sua explicação sobre a alma e o corpo já contém esse princípio subjacente. O poder espiritual age no temporal para adequar este ao fim daquele:

"E daí fica claro que o poder espiritual, por sua própria natureza, comanda o poder secular para o fim espiritual: pois são nessas coisas que o poder secular está sujeito ao espiritual".

Quanto as coisas explicitamente temporais, o bispo não deve interferir arbitrariamente, senão e apenas quando estes domínios temporais padecerem a saúde espiritual. E, para ser ainda mais caudatário de nossa explicação, o grande tomista acentua que tal autoridade do clero sobre as coisas temporais que possam ameaçar e interferir nas temporais "não move a foice… de outro, mas faz uso de sua própria autoridade", autoridade esta dada no esteio causal demonstrado por Tomás na citação de seu comentário às Sentenças.

Creio que, para finalizar esse texto pequeno, as palavras de cardeal Caetano sejam melhores que as minhas:

"[Santo Tomás] observa com isso, que o poder secular não está totalmente sujeito ao poder espiritual. Por isso, em matéria civil, deve-se antes obedecer ao governador da cidade e, em matéria militar, ao general do exército, do que ao bispo, que não deve se preocupar com essas coisas, exceto em sua ordem espiritual, apenas como acontece com outras questões temporais. Mas se acontecer algo nessas coisas temporais, que ocorre em detrimento da salvação espiritual, o prelado, administrando essas coisas por meio de proibições ou preceitos em prol da salvação espiritual, não move a foice para a colheita de outro, mas faz uso da sua própria autoridade: pois com relação a essas coisas, todos os poderes seculares estão sujeitos ao poder espiritual".

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